terça-feira, abril 17, 2007

O dia em que eu quase morri por causa de um carro

Noite de 10 de abril, sexta-feira de feriado em 1998, exatos 7 dias antes do meu aniversário. Por alguns centímetros, uma fração de segundos ou qualquer outra unidade mínima de tempo ou espaço, aquela Páscoa não foi a última da minha vida.

Estacionava o carro em uma rua de Higienópolis, bairro nobre de São Paulo. Acabava de resgatar uma amiga motorista que teve a saia enroscada no pedal do freio, perdeu o controle do veículo e bateu contra uma árvore. O acidente foi leve, mas o carro dela não andava e teve que ser rebocado por um guincho. Fui com um amigo buscá-la e depois retornaríamos para continuar a confraternização de uma turma que se conheceu no colégio.

Depois do resgate, de volta a Higienópolis, descíamos do Fiat Palio quando dois homens subiram a rua e anunciaram o assalto. Um deles me abordou, sacou uma arma e começou a gritar “passa tudo, passa tudo”. O outro deu a volta no carro, e abordou minha amiga, que desembarcava pelo lado do passageiro. O terceiro amigo ainda estava no banco de trás. Ela conta que o assaltante mandou os dois voltarem para dentro do carro, na tentativa de um seqüestro relâmpago.

O ladrão que me abordava gesticulava de arma em punho, mas olhava para o outro lado do carro, talvez para dar “cobertura” ao companheiro desarmado.

Não reagi. Dizia “calma, calma”, mas ele gesticulava com a arma e só dizia “passa tudo, passa tudo”. Deixei a carteira e a chave no banco do carro e fui me afastando. PÁ! Barulho seco. Nunca tinha ouvido, mas era um tiro e tinha sido disparado a um metro de distância de mim. Não senti nada, mas a adrenalina a mil e o instinto de preservação me colocaram em posição fetal.

De cócoras ao lado do carro, com as mão sobre os ouvidos, a vida passou inteira na minha cabeça. Passa sim, é verdade. Passado, presente e futuro, tudo junto, fluido, rápido e eterno. Um segundo, um minuto ou uma hora depois, não sei, começava a voltar à Terra. Levantei, senti braços, pernas e coração batendo e pensei “estou vivo, não morri”.

Os dois ladrões, logo depois do disparo, saíram correndo. Não levaram nada. Me abaixei para pegar a carteira e a chave do carro que havia deixado sobre o banco, quando senti algo escorrendo no pescoço. Os dedos roçaram o buraco na pele. Não era fundo, mas era um buraco. Não sentia nada. Instinto: “Tomei um tiro, vamos para o hospital”. Minha amiga, também em estado de choque, saiu correndo e foi buscar ajuda no apartamento onde iríamos encontrar os outros. O amigo que estava no banco de trás, lá ficou, imóvel, estático. Instinto.

Outra amiga desceu, tomou as chaves da minha mão e me colocou no banco do passageiro. Seguimos para o Hospital das Clínicas. Eu segurava uma blusa para estancar o sangue. Não sabia ainda qual a gravidade do ferimento, mas imaginei que nenhuma função vital tinha sido afetada. Apesar da adrenalina, que segura muita gente de pé em situações críticas, já havia passado um bom tempo e eu continuava vivo e minimamente lúcido.

Hospital, maca, roupas rasgadas e imobilização para não movimentar o pescoço, médicos e enfermeiras circulando ao redor. A adrenalina já tinha baixado, veio a dor: um médico limpava o ferimento com iodo. Sentia o algodão dentro do meu corpo, aquelas luzes de hospital, aquele cheiro de éter... Radiografia, vacina anti-tetânica e depois virei atração turística na maca. Plantão médico em pronto socorro é assim mesmo: um monte de médicos e enfermeiros em residência, ávidos para conhecer e estudar os casos que chegam. Dessa vez eu era o rato branco do laboratório.

- Um FAF nessa região do corpo... meu caro, você tem sorte de estar vivo, 90% dos casos que entram aqui com FAF desse jeito saem ao menos paraplégicos.
- Sério?
- Sério... Você nasceu de novo, hein?
- Pois é, e semana que vem é meu aniversário.
- Nossa, então tem que comemorar duas vezes.

FAF era o Ferimento a Arma de Fogo do qual eu tinha sido vítima a pouco mais de um metro de distância. Foi de raspão, do lado direito do pescoço.

- Sorte sua que foi desse lado garoto: do lado esquerdo fica a jugular e tiro ali faz jorrar um monte de sangue.

Nenhum órgão vital atingido, nenhum osso, nenhum nervo. Apenas uma cicatriz e uma falha na barba depois de alguns anos.

Dirigi automóveis dos 18 aos 24 anos. Em diferentes graus de perigo, fui assaltado pelo menos 4 vezes. Somados aos furtos de toca-fitas e pequenas colisões, a estatística deve chegar a 10 “incidentes”. Todos resultaram em perdas econômicas e alguns trouxeram risco de vida. Sobrevivi.

Vendi o carro há 4 anos. Com o dinheiro, viajei para o exterior e meses depois comprei uma bicicleta. Não fui assaltado nenhuma vez desde então. Continuo a circular pela cidade nos mais diversos horários do dia e da noite, a pé, de ônibus, metrô ou bicicleta.

A maior parte dos paulistanos tem a ilusão de estar mais seguro dentro de um carro do que andando a pé. Acham que as ruas são perigosas e vivem com medo, de vidros fechados e, se possível, blindados. Ironicamente, boa parte deles já foi assaltado, sequestrado ou sofreu outro tipo de violência por causa do veículo.

É claro que os assaltos em ônibus ou calçadas também acontecem, como acontecem também em mansões e condomínios super-protegidos com esquemas paranóicos de segurança ou em casinhas de classe média baixa. Mas em um país cuja distribuição de renda só é pior do que em Serra Leoa, é óbvio que os milhares de Reais sobre quatro rodas chamam atenção, ou melhor, atraem criminosos.

A solução para a violência urbana passa pela distribuição da riqueza, pelo investimento em educação, moradia e saúde, pela redução na corrupção e também pelo investimento em segurança pública. Resgatar as ruas e transformá-las em ambientes seguros e agradáveis não é algo que possa ser feito de dentro de um carro blindado. Soluções privadas vendidas como panacéia contra a criminalidade não são capazes de solucionar problemas públicos, que exigem, é claro, soluções coletivas.

Como diz o sábio Rogério Belda no vídeo Sociedade do Automóvel, “ao segregar os habitantes em locais onde se acessa por automóvel e a rua passa a ser inóspita pelo tráfego e pela poluição, nós estamos abandonando a cidade e deixando que ela seja ocupada exatamente por aqueles que não são cidadãos”.

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Comments:
Vendi o carro há 4 anos. Com o dinheiro, viajei para o exterior e meses depois comprei uma bicicleta. Não fui assaltado nenhuma vez desde então. Continuo a circular pela cidade nos mais diversos horários do dia e da noite, a pé, de ônibus, metrô ou bicicleta.

Um exemplo a ser seguido.
 
mais um post muito phoda...


felicidades

e um bom pedal
 
Parabéns ! Exelente texto e depoimento ! Que sirva de exemplo !
 
Belo texto...
Ah, feliz aniversário!
 
Feliz aniversário luddista!
 
Tambem ja fui assaltado a mao armada, mas nao estava de carro - dispararam tiro para o ar, e levaram minha bicicleta e a da minha namorada. No dia seguinte fui na redondeza investigar, reclamar com a policia e falar com os bicicleteiros da area. Convers vai conversa vem descobri que os malandros tinham oferecido a bici para um deles. Ofereci uma reocmpensa e "acharam" a minha bici. Fui la com a policia e peguei de volta. Tive sorte, mas fiquei puto e enchi o saco, e isso foi a gota d'agua para eu resolver mudar de pais. Agora estou morando em Wellington, na Nova Zelandia, que e' bem segura, mas meio cagado para bicicleta, por que tem muito carro (mais de um para cada habitante), mas para quem vem de Sao Pualo e' como cortar manteiga com a faca quente. Aqui eu tenho um cargo num comita de uma ONG de defesa dos direitos dos ciclistas (www.can.org.nz), e estou envolvido em varios projetos, inclusive levantamento e fundos para dar um upgrade no website. E feliz da vida. Vou para Sao Paulo em Julho, gosto de visitar uma vez por ano, para ver os parentes e os amigos, e para devorar as melhores comidas do mundo nos restaurantes que eu mais gosto. Quero fazer uns contatos com grupos de usuarios de bicicleta. Gosto muito do seu blog, leio sempre. Um abraço.
 
Teve sorte, no meio do azar. :-) Também acho que as pessoas começam a barricar-se dentro dos automóveis, vêem-se autênticos tanques (de luxo) nas ruas. Via isso só na América Latina e ouvia que era por causa dos frequentes sequestros, mas está chegando aqui em Portugal. E quanto mais as pessoas se barricam no carro maior a degradação do ambiente (social, natural,...) cá fora. É um círculo vicioso. :-(
 
Cara, tb tomei essa "atitude". Depois de 05 anos com o carro me separei totalmente há dois anos e "to feliz da vida". Ando de bike diariamente e costumo fazer as coisas e utilizar o comércio mais próximo de casa. Para ir ao trabalho minha empresa oferece um ônibus fretado, pois fica em Alphaville, e praticamente 80% dos funcionários optaram pelo transporte. São dois pontos positivos, 80% menos carros aqui e horários de entrada e saída definidos aumentando a produtividade do pessoal que tem que trabalhar durante este período.
Abraços a todos. BIKE RULES!
 
A distribuição de renda de Serra Leoa é bem melhor que a do Brasil. A desigualdade Brasileira é a pior do mundo, ultrapassando o país mais próximo (México) com folga de mais de 20%.
 
Este post foi um soco no estômago.

Ainda não tomei coragem de vender o carro, mas cada vez mais ele fica parado na garagem.
 
Parabéns Ludista, pelo aniversário e pelo depoimento.

Também fiz aniversário neste dia 17 de Abril (ps: sou de 1979), e também tenho utilizado a bicicleta no meu dia a dia, deixando o carro para situações excepcionais, finais de semana ou esporádicas viagens.

E realmente, me sinto muito mais seguro enquanto estou pedalando do que dirigindo meu "velhinho", ou aguardando algum ônibus. A bicicleta não te deixa esperando, não te deixa vulnerável, preso no entre os carros, e não é um bem tão valioso a ponto de ser ou te deixar tão visado por ladrões e bandidos...
 
Parabéns e que bom que o tiro foi do lad errado.

Idéias boas iriam ser silenciadas muito cedos.
 
simplesmente ótimo o texto
 
Cara,
Não conhecia esta sua história. Parabéns por estar vivo! Belo texto.
 
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