segunda-feira, novembro 27, 2006

Nada justifica a brutalidade fardada, a resignação popular e o jornalismo porco


Quem é o palhaço?

Na última sexta-feira (24) fui ao ato contra o aumento das passagens do transporte coletivo. A concentração estava animada, bateria, malabares, cartazes criativos e muita gente.

Poucos entre os presentes não eram estudantes. Será que o resto da população não está preocupada com o aumento acima da inflação que a prefeitura pretende impor ao transporte coletivo? Será que o povo já assumiu seu papel de escravo resignado da democracia midiática, que vota uma vez a cada dois anos e passa o resto do tempo xingando o político eleito? Onde estavam os tais "movimentos sociais"? E os tais "partidos políticos"?

Pouco depos das 18h, os cerca de 800 presentes decidiram sair em marcha pelas ruas centrais. Trajeto combinado em assembléia, festa, panfletagem e conversa nas ruas do centro.



O trânsito abriu passagem para a manifestação. Polícia Militar, agentes da CET e da SPTrans acompanhavam de perto, mas não houve nenhum incidente em quase duas horas de caminhada pelas ruas e pelos calçadões remanescentes do centro...



... ou melhor, nenhum incidente que pudesse ser motivo de ação policial. Na foto acima, vários carros em local proibido não despertaram o interesse dos agentes de trânsito (nem dos manifestantes).



Terminal D. Pedro: além de panfletagem, alguns manifestantes abriram as portas traseiras de alguns ônibus para que os passageiros entrassem de graça. Vandalismo na opinião de alguns, a abertura das portas era um ato de desobediência civil, ou seja, uma ação que não atenta contra a vida, mas sim contra uma lei que julga-se incoerente. Em última instância, na opinião de quem abriu as portas, o transporte público, por ser um direito, deveria ser gratuito.



Até aí, tudo bem. Poucos instantes depois, chega o primeiro carro da Força Tática, a versão "de rua" da famigerada "tropa de choque". Nesta altura do campeonato, os manifestantes (ainda que involuntariamente, na opinião de alguns) bloqueavam o terminal, impedindo a entrada e saída dos ônibus.

Ao avistar os homens fardados, decidi me afastar. Em primeiro lugar não concordava com a obstrução do terminal, acreditava que a manifestação deveria seguir adiante sem prejudicar os resignados passageiros (que têm a liberdade de pagar tarifas abusivas por um serviço péssimo). Em segundo, minha experiência em manifestações dizia que em pouco tempo aconteceria o que de fato aconteceu.

Não houve conversa, não houve aviso, não houve sequer a tradicional ameaça da tropa enfileirada batendo com os cassetetes nos escudos e avançando para cima da massa. A PM simplesmente disparou aleatoriamente bombas de efeito moral, gás pimenta e lacrimogênio.

Quem já foi em alguma manifestação sabe que estas armas químicas de uso contra civis, apesar do nome, não têm nada de "efeito moral": provocam náuseas, falta de ar, problemas respiratórios, os estilhaços tiram pedaços da pele e o barulho das explosões pode provocar a perda da audição.


(foto: CMI São Paulo)

Ainda que consideremos a ação dos manifestantes como "perturabação da ordem pública" e uma "violação do direito de ir e vir dos demais passageiros", existem diversas formas de se dissipar um aglomerado de gente.

Utilizar um megafone e dizer que todos devem desobstruir o espaço em tantos minutos seria o mais razoável. Dialogar com os manifestantes, perguntar suas razões e até pedir para que saíssem seria possível. Avançar com a tropa protegida por escudos para abrir espaço poderia até ser aceitável, deter os mais exaltados (sem a truculência habitual) também.

Jogar bombas ao léu no meio de um terminal de ônibus cheio é irresponsabilidade digna de regimes ditatoriais. É uma clara demonstração de que a polícia de São Paulo só conhece uma maneira de lidar com manifestações populares: suprimi-las, utilizando amplo arsenal bélico na repressão a rodo de quem está pela frente. Além de manter a ordem para os donos do Estado, desconta a raiva acumulada em pessoas desarmadas e indefesas.


(grafite nas ruas de Santiago, Chile - foto: João Campos)

Um capítulo à parte nessa história é a cobertura de uma parcela da mídia corporativa. Seguindo a tradição "espreme que sai sangue", os principais veículos deram destaque ao "confronto" e não aos outros momentos do ato.

Esta matéria da Folha de São Paulo foi mais além e criou uma teoria conspiratória para explicar a "tática" dos manifestantes. O trecho final da matéria demonstra o quilate da má intenção jornalística:

"Não se viam bandeiras do PT. Nem os radicais PSTU e PSOL estavam representados na passeata e invasão do terminal de ônibus. Também a União Nacional dos Estudantes e a Central Única dos Trabalhadores não estavam presentes.

Em vez disso, muito jovem vestido de preto, camisetas da banda Ramones, correntes na roupa, piercings, punks. Também tinha "zapatistas brasileiros", que desfilaram com bandeiras vermelhas e pretas, e camisetas enroladas no rosto, para parecer o Subcomandante Marcos, líder do movimento mexicano. "Kassab, mas que vergonha, essa passagem tá mais cara que a maconha", protestava um grupinho.

Ah, também tinha os palhaços do "Palhaços pelo Passe Livre", que defendem a vida sem catracas e a passagem gratuita para todos."

Parece piada, coluna social ou artigo do Zé Simão, mas não é, é matéria "séria" de quem se auto-denomina "o maior jornal do país". Veja também uma resposta publicada no CMI.

Muito mais condizente com a realidade foi a cobertura do Estadão. Alguns trechos da reportagem de Fabiano Rampazzo (para assinantes):

"Ontem à noite, após o confronto, a PM declarou que 'apenas reagiu ao ataque de estudantes mascarados com toucas ninjas, que, com coquetéis molotov, pedaços de madeira e barras de ferro tentavam manter fechados os portões do terminal.'

A reportagem acompanhou a manifestação e o bloqueio ao terminal, mas não viu nem coquetéis molotov nem 'toucas ninjas'. "

(...)

"Um rapaz deitado foi espancado com golpes de cassetete por quatro policiais ao mesmo tempo. Desesperadas, pessoas que estavam no terminal e nada tinham a ver com o protesto dos jovens gritavam e buscavam algum lugar para se proteger. 'Eles querem matar todo mundo?', disse, chorando, a vendedora Ana Lins, que aguardava o ônibus.

A tropa saiu do terminal e seguiu os estudantes, lançando mais bombas. Pedestres, motoristas e lojistas foram atingidos por gás pimenta."

E o repórter ainda faz um desabafo em outra nota publicada na mesma edição:

"Foi a segunda bomba lançada pela PM que me acertou. O estilhaço que me feriu o ombro serviu, contudo, apenas de antepasto. Mais tarde, na Sé, a um centímetro de meu rosto, um PM, me confundindo com um estudante, disparou um jato de spray de gás pimenta, que me deixou queimando por duas horas. A pergunta é: se eu fosse um estudante, isso seria válido?"

[vídeo da repressão policial]

[wiki da Frente de Luta contra o Aumento]

[estudante espancado pela PM não poderá se formar este ano]

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Comments:
É um alento ver uma mobilização juvenil na questão do transporte em São Paulo. Haverá uma luz no fim do tunel? Só esses jovens podem mudar o perfil "palhaço resignado" da nossa sociedade.
 
veja que coisa....
eu que tento me informar, dispondo apenas da imprensa burguesa (os jornalões..) não vi absolutamente nada que mostrasse o tamanho do confronto.


...Não vai passar na minha TV...
 
A atitude da polícia é referendada pela imprensa estúpida que prefere estigmatizar um grupo que se organiza com a intenção de manifestar indignação, como se as razões não fossem legítimas.É muita má-intenção,descompromisso, leviandade.

É certo que a dificuldade de se conhecer a dimensão dos acontecimentos narrados pela impresa midiática, não podem minar a nossa capacidade crítica de entender que a história é feita de versões e quem quiser que conte outra.

Observei, como usuário do ônibus que o famigerado "Jornal do ônibus" que se presta a informar notícias relacionadas a essa "maravilha de transporte" não fez qualquer referência sobre o aumento das tarifas. Talvez para que não despertasse o debate entre os seus usuários, ou pudesse ser fator de organização de um eventual movimento.

Concordo com o comentário sobre os grupos sociais organizados que não compareceram para apoiar o movimento de indiganação que se instalou no centro na úlitma sexta. Trata-se de um problema comum que diz respeito a população de toda cidade, para além das individualidades de cada um ou interesses particularmente organizados.

A população está de fato resignada. A lotação, o trânsito, o excesso de veículos particulares atravancando as ruas da cidade, se tornaram um problema imenso que cansa as pessoas que preocupadas com seus problemas imediatos e sem tempo para pensar em si como agente social, seguem seus caminhos solitários, ainda que elatados dentro do "busão". Talvez pensando: "Deus quis assim! amém"
 
é o goveno com medo da massa crítica... vai vendo...
 
ficou ótima a comparação final entre os dois artigos que saíram na mídia. o texto todo ficou muito bom, parabens
 
às vezes eu tenho a impressão que centrar o debate na questão do valor das passagens é bastante redutor - e que os estudantes fazem o jogo contra o qual lutam quando fazem isso. como não estou aí em são paulo, ficou mais claro agora que, na verdade, as representações que a mídia faz dos protestos (e as representações que alguns dos manifestantes fazem dos protestos) formulam a questão apenas como uma questão de aumento de tarifas, mas que, de modo algum, essas representações condizem com a plataforma de discussões que pode ser proposta a partir desse tipo de protesto. ao reduzir a questão para o ponto das tarifas, a imprensa (de um modo geral) acaba estereotipando os protestos, equalizando sua complexidade e sua variedade, bem como enquadrando a rebeldia nas formações-discursivas mais atraentes para o estado das coisas, essas formações que concebem o individualismo e a atuação do "consumidor", silenciando ou não conseguindo perceber a existência de formulações coletivas, a um só tempo conjuntas e saudavelmente contraditórias, propondo novos modos de imaginar o espaço público.
 
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